Chicletes

A questão era muito simples, e aliás, nunca pareceu complicado na sua cabeça. Enquanto aquele pensamento pairava em sua consciência, o cigarro queimava os dedos em que repousava. Era o quinto seguido, último do maço daquele dia. O doutor havia mandado parar com essa mania, recomendava mascar chiclete. "Mascar chiclete" balbuciava, "que filho da puta". E então, voltava seu pensamento a questão que vinha lhe incomodando já há algumas horas: o fato de Maria ter lhe deixado sem explicação alguma.

A vida tem dessas coisas. Nem tudo é feito pra se entender. E tem coisas que literalmente não são. E ele sabia disso. Mas sempre havia sido tão fácil entender Maria. Maria era um dos seres mais doces que ele já havia conhecido. Mesmo ao lado de um ser repugnante como ele, nunca levantava a voz, nunca o reprimia. Mesmo quando ele religiosamente ofendia tudo que ela, por livre e espontânea vontade, havia escolhido acreditar, ela nunca tinha deixado de olhar pra ele com a mais bonita ternura, como se tivesse pena e o perdoasse a cada tiro que fosse disparado contra seu peito por aquele ser humano desacreditado. Mesmo quando ele chegava trôpego, rastejando de bêbado, ainda exalando a catinga da cachaça comprada com o pouco do dinheiro que sobrava, e a enchia de bofetadas, Maria não reclamava. Mesmo doída, Maria não reclamava. Mesmo morta, Maria não reclamava.

A equação parecia fácil: Um péssimo companheiro acaba sendo deixado. E ele sempre esperou isso. Acontece que depois de tantos anos, você se acostuma com a ideia de que a pessoa não vai mais embora, independente do que aconteça. Mas Maria foi. E indo embora ele ficou sozinho com aquilo que ele mais termia na vida: ele mesmo e a necessidade de encarar suas frustrações.

O fracasso é o pior dos medos. É tão ruim que o breve pensamento na possibilidade de seu acontecimento já faz alguns desavisados desistirem dos seus mais novos objetivos. O medo de fracassar tem sido, ao longo da história da civilização, um freio para inúmeros pensadores, conquistadores, sonhadores. E aguentar mais um fracasso, agora com sua companheira, não estava nos planos de sua vida. Afinal, por muito tempo, quando ainda resguardava a si o direito de sonhar com um vida melhor distante daquela podridão em que vivia, imaginou um cenário onde ele e Maria seriam um casal feliz, daqueles que passam na televisão, onde os problemas se resumem em discussões tão abstratas que seria necessário uma enormidade de tempo livre para que aquilo viesse a mente. Mas pobre não tem tempo, muito menos tempo livre. Então, pobre não tem problema de rico, e se briga, é porque alguma coisa realmente ta errada.

Mais uma tragada. O peito inflava e inflamava, queimando toda aquela dor que não alcançava a superfície nunca. "Por que levar as crianças? Tinha que ser os dois? Podia deixar um pra me fazer companhia".O cigarro hoje era caro, e o maço durava cada vez menos. Cinco da tarde e o maço já nem pesava. Mesmo assim, deixava a caixinha no bolso da frente da camisa mostarda da firma, uniforme que revezada religiosamente com seu pijama, uma camisa branca manchada de amarelo em baixo dos braços e um short velho vermelho comprado no êxtase de alguma campanha vitoriosa do América, fato que só atestava ainda mais a idade da vestimenta. "E se ela ainda for voltar" falava, sem acreditar. "E se ela só foi esfriar a cabeça" lamentava.

Olhando daquela janela, o vento frio invadia o apartamento pequeno. As luzes da cidade pareciam cintilar distantes como se anunciassem que aquilo era um organismo vivo, e que em cada janelinha minúscula daquele vivia alguém, cheio de problemas, como de fato, vivia. E em uma delas vivia Horácio, que agora chorava incessantemente, com uma mão no rosto (a outra ainda segurava o cigarro, quase no fim, que por alguma razão incompreendida por nós ainda não havia se apagado) e com os olhos afogados nas lágrimas de solidão. Entre o polegar o seu indicador, uma foto três por quatro de Maria, com o cabelo loiro, ralo, cacheado, e a mesma ternura de sempre, que parecia exalar da foto e lhe trazer um pouco mais de calma naquele momento de desespero. Ao abrir os olhos finalmente, enxugar um pouco as lágrimas, decidiu que iria mudar os rumos de sua vida, e quem sabe então, recuperar Maria de novo. Talvez se prometesse que seria um novo homem, talvez se prometesse que arrumaria um emprego melhor, que compraria mais coisas pra casa, pra ela, pros filhos. Talvez se contasse a ela todos os dias de manhã como ele a amava e como ela era a única coisa que realmente importava na vida dele. Talvez se ele dissesse que estava assutado, que nunca esteve pronto pra vida, por que afinal, quem está? Eles vendem um sonho e não contam que aquilo tudo é mentira. Mas talvez se ele prometesse pra ela que ele usaria até a sua última gota de suor pra dar a ela um pouco mais de conforto. Talvez depois de tudo isso ele pudesse, novamente, ver  o rosto pálido de Maria lhe dizendo que tudo ficaria bem.

Ao olhar esperançoso para o horizonte, Horácio viu a possibilidade de uma nova vida se materializar no cimento cinzento dos prédios da frente. Estava feliz como nunca estivera antes. Estava disposto a se permitir sonhar com a primeira coisa em anos. Nessa hora o interfone toca, era do térreo. Uma voz trêmula pede pro "homem do 303" descer pra ver uma coisa e desliga subitamente antes de fornecer qualquer explicação. Por um momento ele pensa em ignorar, xinga ao vento algumas palavras contra aquelas crianças do bairro "Passando trote uma hora dessas..." Decide descer, nem que fosse pra conversar com o pai de algum deles e dizer que não iria mais aturar essas coisas, ou então ele mesmo ensinaria uma lição aqueles moleques. Mas ao chegar na portaria, estranha. As luzes repetidas em branco e vermelho, a multidão que se juntava pra ver, o choro, os gritos, as palavras. Avançou, assustado, em meio a multidão, vestido somente de um roupão cinza que abrigava ali por baixo apenas o pijama, uns chinelos velhos e nos bolsos o telefone celular e o maço, já leve, de cigarro. A cada segundo que passava, o desespero invadia sua cabeça e ele andava mais rápido, lembrando-se das palavras que intimaram o "homem do 303" a descer. "Não pode ser, não pode ser" repetia, já, gritando em alto e bom som. "Não faz isso comigo Deus, eu te imploro" repetiu uma última vez, ao alcançar o centro da multidão, e se lançar sobre o que ali se conservava, aos prantos, enquanto pintava seu roupão cinza de vermelho, e se misturava ao asfalto como que se numa única massa indistinguível. Chorou e amaldiçoou. Chorou como se ele mesmo tivesse morrido. Chorou ao ver Maria e seus dois filhos ensanguentados, desfigurados, no chão daquela Rua Quinze, defronte ao prédio em que morava. Chorou por saber que ele era o culpado. Chorou desacreditado.

Foi interrompido pela equipe da polícia, que logo se aproximou para impedir que ele prejudicasse o cenário e permitir que os funcionários da limpeza colocassem os cadáveres no rebecão, para que "todas as devidas providências" pudessem ser tomadas. Sentou então na beira da calçada, e ainda tremendo, buscou, como última esperança, o maço, no bolso lateral do roupão, para fumar  a dor que consumia a carne do seu corpo lentamente transformando-o num ser disforme, sem personalidade, sem crença qualquer na vida. Um homem baixo, calvo, amarelo se aproximou e, antes que ele alcançasse o maço, lhe informou que Maria e seus filhos haviam sido atropelados por um motorista de ônibus que estava fora do percurso, atrasado, enquanto voltavam para casa, carregados de malas pesadas, uma em cada mão. "Um azar" disse o homem. Não falou. Abriu o maço, olhou pro fundo e nada. Vazio. O telefone vibra no bolso esquerdo. Na mensagem do médico, os dizeres "Horácio, você precisa para de fumar, se não por você, por Maria e pelos seus filhos".

Horácio viveu e morreu naquela quarta-feira a noite. A vida tem dessas coisas. Nem tudo é feito para se entender. E tem coisas que literalmente não o são.

Comentários

  1. Ao fim, eu diria que o a solidão, esta sim, é o pior dos medos!

    Mare.

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