Noir

Acordar no meio da noite já tinha virado rotina. Passar a noite inteira na varanda fumando um cigarro também. Era engraçado como em certa hora da madrugada a ponta vermelha do maldito era a única luz que habitava seu campo de visão, a única coisa que podia ser vista de longe, como um vagalume em alguma noite escura de alguma floresta escura por aí. Sua esposa dormia o vigésimo sono, despreocupada dos problemas os quais o preocupavam. Afinal, de muitos deles ela nem sabia, como ele meticulosamente havia planejado que acontecesse. Era homem, e fora ensinado desde cedo que era dele o fardo, a sina de carregar o título de resolvedor de problemas, provedor da casa, pilar mais forte. Papel que ele tentava cumprir com extrema maestria. Tanta maestria que não aguentava mais acordar a noite e não fumar. "Uma válvula de escape" pensava ele, "Lícita, moralmente aceita", se justificava. Cada tragada de fumaça escaldante que adentrava seus pulmões, invadindo seus brônquios e causando a leve sensação de relaxamento, tudo isso enquanto sua pressão abaixava drasticamente, parecia estar sufocando uma prece interna que dizia que se ele não parasse logo com essa rotina as consequências seriam as piores possíveis. Pensava nessa hora em seus filhos gêmeos, recém-nascidos, que poderiam ter de crescer sem um pai, acometido por um câncer fulminante ou um súbito ataque cardíaco, que o tornaria memória num álbum de fotografia ou em um quadro pendurado na escada da casa. Não importava. Nada importava. A necessidade de um prazer momentâneo, carnal, palpável, era tanta que nem os piores pesadelos poderiam conter a sua avassaladora vontade de fumar aquele maldito cigarro, "Tem sacrifícios que valem a pena" concluiu. Lembrou de um livro que leu na infância sobre um homem que a cada vez que completava cinquenta anos, ao dormir, acordava com vinte novamente. "Daria tudo por uma chance dessas, pra ter a chance de viver tudo de novo", Nem o céu era o mesmo de trinta anos atrás, hoje cortado mais por satélites do que por estrelas cadentes. Nem suas mãos eram as mesmas de trinta anos atrás, hoje mais cortadas pelas linhas da velhice do que pelas aventuras de um jovem transviado. "Se eu tivesse uma chance de voltar" lamentava, ao apagar o cigarro no tosco cinzeiro comprado na feirinha de domingo, que tinha em uma ponta a cabeça de um Buda sorridente. Se levantou, deu as costas a imensidão, e caminhou lentamente em direção a rotina que lhe esperava no dia seguinte, desaparecendo no escuro, no melhor estilo noir dos filmes de antigamente. Só uma coisa lhe mantinha conectado ao homem que fora um dia em sua juventude e que tanto admirava. Só uma coisa lhe fazia lembrar do sopro da intensidade, da irresponsabilidade, do sangue correndo acelerado nas veias que lhe dizia que ele poderia conquistar o mundo todo, se quisesse. Só havia uma coisa que ambos tinham em comum. Ele. O velho companheiro. O vício.

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